Cavaco Silva nunca perdeu nada, nas contas dele, excepto uma vez. Depois da morte de Sá Carneiro, foi convidado para continuar nas Finanças, tendo recusado participar num Governo a prazo (as relações entre ele e Rebelo de Sousa estarão marcadas por esse período e seria preciso recordar em que sentido). Em 1985, seguiu vitorioso para o Congresso do PSD, abrindo-se as portas para 10 anos de governo. Em 1995, não concorreu às legislativas, para não as perder. Mas perdeu no ano seguinte, precisamente, para a maioria de esquerda que levou Jorge Sampaio à presidência. Cavaco Silva não vai perder outra vez para uma maioria de esquerda. Quer fazer contas com a História. E, isolado, cansado e sem ideias foi buscar os radicais, aqueles que não esquecem o passado e que até gostam de o reinventar. Ninguém comenta muito, mas esta coisa de formar um Governo que já se sabe que vai ser chumbado - se fosse mesmo só para isso - é uma fantochada, é uma brincadeira com a democracia. Sim, a Coligação ganhou, sim devia ser chamada, e sim deveria recusar o convite, por saber que será chumbada. Mas não o fez. Porquê? Será que o Governo de amanhã é um governo de 15 dias? Ou não será um governo de combate, contra a Assembleia da República? A esquerda está calada agora porque não quer entrar numa luta perdedora com o Presidente e faz bem, e a direita amiga calada está porque, sabendo ou não sabendo o que vai acontecer, pressente que vai sobrar para ela. E o que irá acontecer, que faça sentido com isto tudo? Um golpe de chantagem, com estes contornos: Cavaco dirá amanhã que ou PS se entende com o PSD e o CDS para formar um novo governo, ou deixa o novo governo em gestão. Assim, a culpa desse odiado governo de gestão será dos "partidos". Às vezes parecem estranhas as posições contra um governo desses vindas de alguns quadrantes e assim se explicariam. O PS fica com o ónus da instabilidade, "por não se querer entender", e será atacado por todos os lados para chegar enfraquecido às eleições antecipadas que o golpe quer fazer. Marcelo Rebelo de Sousa (o rival?) que resolva depois o assunto. Os comentadores do regime serão em breve convocados para conhecerem as variantes do mantra de que "a culpa de termos um governo de gestão é do PS, por não ser querer entender." A imprensa estrangeira falou de golpe, foi entretanto desmentida por quem não terá ainda percebido o alcance antidemocrático de Cavaco, mas ainda vai ter razão novamente. Será que o que sobra do PSD vai embarcar nesta história, se ela se vier a desenrolar? É triste ter de pensar nestes termos, mas resulta de se calçarem as botas de gosto conspirador. O bom é que só se consegue vencer a democracia com ditadura e, felizmente, por causa da Europa - e da mal reconhecida tradição democrática portuguesa -, não estão tempos para tal coisa. Com todas estas manobras, entretanto, uma coisa já foi ganha: a austeridade acabou de facto.(1) É só mesmo luta pelo poder. Oxalá esteja redondamente enganado. Entretanto, espera-se que haja quem esteja de sobreaviso.
(1) A austeridade (tal como a economia) tem um lado dinâmico que é talvez o seu aspecto mais difícil de entender. Já tentei explicar em pelo menos dois posts anteriores, mas não é fácil e se calhar não consegui. É preciso tempo e atenção.
PS: Será que o discurso do PR de hoje tirou toda a razão à parte deste texto sobre o próximo futuro? Era bom. O que apetece mesmo é começar a falar do governo que vem aí a seguir.
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